Paradoxo da Cognoscibilidade e a Doutrina da Encarnação
Um dos paradoxos mais interessantes em lógica epistémica (ver aqui apontamentos sobre esta lógica) é o paradoxo da cognoscibilidade. Esse paradoxo resulta da prova de Frederic Fitch (1963) de acordo com a qual um princípio aparentemente modesto da cognoscibilidade (PC), de que cada verdade é em princípio conhecível, implica uma alegação absurda de que somos omnisciente (O), de que de facto sabemos todas as verdades. Ou seja, o paradoxo da cognoscibilidade mostra que se segue da afirmação de que todas as verdades são cognoscíveis que todas as verdades são conhecidas. Ou de um modo mais formal:
∀p(p→◊Kp) ├ ∀p(p→Kp)
A prova é relativamente simples:
(PC) ∀p(p→◊Kp) [princípio da cognoscibilidade]
(¬O) ∃p(p∧¬Kp) [princípio de que não somos omniscientes]
(1) ∴ p∧¬Kp [instância de ¬O]
(2) ∴ (p∧¬Kp)→◊K(p∧¬Kp) [instância de PC, substituindo a linha 1 pela variável p em PC]
(3) ∴ ◊K(p∧¬Kp) [de 1 e 2, por modus ponens]
Contudo, pode ser mostrado independentemente que é impossível saber esta última conjunção. Ou seja, a linha 3 é falsa. Para isso considere-se o seguinte:
(4) K(p∧¬Kp) [suposição para a redução ao absurdo]
(5) ∴ Kp∧K¬Kp [de 4, dado que o conhecimento de uma conjunção implica o conhecimento dos seus conjuntos]
(6) ∴ Kp∧¬Kp [de 5, dado que o conhecimento implica verdade (aplicado ao conjunto do lado direito)]
(7) ∴ ¬K(p∧¬Kp) [de 4 a 6, por redução ao absurdo]
(8) ∴ □¬K(p∧¬Kp) [de 7, pela regra de necessitação]
(9) ∴ ¬◊K(p∧¬Kp) [de 8, dado que proposições necessariamente falsas são impossíveis]
Tal como se pode constatar, a linha 9 contradiz a linha 3. Assim, segue-se de PC e ¬O uma contradição. Por isso, o defensor de PC, de que todas as verdades são cognoscíveis, deve negar ¬O, i.e., negar que não somos omniscientes:
(10) ∴ ¬∃p(p∧¬Kp)
E daqui se segue que todas as verdades são efectivamente conhecidas:
(11) ∴ ∀p(p→Kp)
Portanto, o defensor de PC, de que todas as verdades são cognoscíveis (ou possíveis de conhecer), é forçado absurdamente a admitir que todas as verdades são conhecidas, i.e., que somos omniscientes.
Para escapar a essa conclusão absurda em vez de se negar ¬O pode-se negar PC, defendendo-se que não é o caso que todas as verdades sejam cognoscíveis ou possíveis de conhecer. Um dos problemas é que o Cristão tradicional em princípio não poderá enveredar por essa manobra, tal como defendido por Jonathan Kvanvig (2010), dado que entra em conflito com a doutrina da encarnação.
Para se ver isso, suponha-se que a solução de Thomas Morris (1986) para o puzzle lógico sobre a encarnação é a mais plausível e, do mesmo modo, que a doutrina da encarnação exige que não haja conflito nas propriedades essenciais da divindade e nas propriedades essenciais da humanidade plena. Ora, se Morris tem razão, então uma propriedade essencial de qualquer ser plenamente humano é que todas as verdades são cognoscíveis, ou possíveis de conhecer, para um tal ser. Mas porquê? Isto porque Deus é essencialmente omnisciente; mas a propriedade essencial de ser omnisciente é incompatível com a propriedade essencial de haver verdades incognoscíveis - desse modo, nada poderia ser divino e plenamente humano, tal como Cristo, sem que haja uma propriedade essencial de seres plenamente humanos de que todas as verdades são cognoscíveis por eles. Deste modo, o Cristão tradicional aparentemente não pode escapar ao paradoxo da cognoscibilidade ao negar PC. Como resolver, então, esse paradoxo?