2016.05.22 | Lógica |

Problema Lógico da Trindade

No cristianismo para além de se sustentar a crença de que Deus existe também se defende crenças mais particulares, como a crença na ressurreição, a crença na encarnação de Deus, a crença na trindade , entre outras. Todas estas doutrinas cristãs levantam problemas filosóficos interessantes e desafiantes, como tentar determinar se tais doutrinas são logicamente coerentes ou consistentes. Caso não sejam consistentes, então terão de ser abandonadas. Vou fazer um pequeno esboço sobre o problema lógico da trindade e sobre as principais respostas filosóficas que se têm construído. Ora, de acordo com a doutrina da Santíssima Trindade (veja-se o Credo de Niceia [380] e o de Atanásio [500]) temos o seguinte conjunto T de afirmações:

(1) O Pai é Deus.

(2) O Filho é Deus.

(3) O Espírito Santo é Deus.

(4) O Pai não é o Filho.

(5) O Pai não é o Espírito Santo.

(6) O Filho não é o Espírito Santo.

(7) Há exactamente um só Deus.

Este conjunto T suscita vários puzzles filosóficos e muita discussão filosófica (pelo menos desde os séculos IV e V). Um desses puzzles é o problema de saber se o conjunto T é consistente ou inconsistente. Há duas formas de mostrar que T é inconsistente. A primeira forma consiste em ler a cópula “é”, nas frases de (1) a (6), como identidade estrita (como “=”). Ora, a identidade é uma relação de equivalência em que se seguem as seguintes regras:

Reflexividade: ∀x(x=x)

Simetria: ∀x∀y(x=y→y=x)

Transitividade: ∀x∀y∀z((x=y∧y=z)→x=z)

A partir daí podemos obter uma inconsistência, pois podemos deduzir:

(8) Deus é o Filho. [de 2, por simetria]

(9) O Pai é o Filho. [de 1 e 8, por transitividade]

(10) O Pai não é o Filho e o Pai é o Filho. [de 4 e 9]

Ora, como a partir do conjunto T se originou uma contradição em (10), esse conjunto T é inconsistente. Uma outra forma de mostrar a inconsistência consiste em ler a cópula “é”, nas frases de (1) a (3), como predicação, i.e., usar o “é” para atribuir uma propriedade a um objecto. Por exemplo, a frase “O Snoopy é um cão” não é uma frase de identidade, pois ‘um cão’ não selecciona um tipo particular de objecto. Assim, nessa frase o que se diz é que o Snoopy tem a propriedade de ser um cão. Apliquemos então a leitura predicativa às frases (1), (2), e (3). Ora, a partir daí não se pode concluir que “o Pai é o Filho”, pois de “x tem P” e “y tem P” não se segue que ‘x é idêntico a y’. Portanto, as afirmações de (1) a (6) com esta leitura não são inconsistentes. Todavia, o conjunto T ainda assim é inconsistente, pois das afirmações de (1) a (6) segue-se que:

(11) Deus é (pelo menos) três em número, nomeadamente o Pai, o Filho, e o Espírito Santo, cada um distinto do outro. [de 1-6]

(12) Deus é um em número e Deus não é um em número. [de 7 e 11]

Ou seja, das afirmações (1) até (6) podemos concluir que há pelo menos três Deuses. Todavia, isso é inconsistente com o monoteísmo cristão que sustenta que há apenas um Deus. Ora, como em (12) chegamos novamente a uma contradição, o conjunto T é inconsistente e, dessa forma, a doutrina da trindade não é coerente. Pelo menos não é coerente enquanto se ler as frases do conjunto T desta forma predicativa ou com a identidade estrita.

Como se pode, então, defender racionalmente a coerência da doutrina da trindade? Para isso, primeiro, não se poderá usar aquelas leituras predicativas e de identidade estrita, que analisamos acima, no conjunto T (pois como vimos isso levará a inconsistências). Segundo, a coerência da doutrina da trindade será mostrada só se houver ou for possível uma estratégia ou modelo em que T seja consistente. Mas haverá um tal estratégia ou modelo que seja plausível? Ao longo da história surgiram algumas propostas interessantes. Uma resposta imediata e possível, conhecida como modalismo, seria defender que na trindade o Pai, o Filho, e o Espírito Santo são diferentes aspectos ou manifestações de Deus, i.e., diferentes modo de apresentação pelos quais Deus se dá a conhecer. Dessa forma, dizer que Deus é Pai, Filho, e Espírito Santo seria bastante análogo a dizer que Clark Kent é o namorado de Lois Lane, o filho biológico do kryptoniano Jor-El, e o Super Homem. Todavia, pode-se objectar com bastante plausibilidade que essa estratégia não parece coerente com a doutrina da trindade que sustenta explicitamente que na trindade existem três pessoas mas um só Deus.

Uma outra estratégia é adoptar um modelo social (que tem raízes em Gregório de Nissa e que é actualmente defendido por Richard Swinburne) que segue a analogia de uma família ou sociedade. Assim, há três pessoas (Pai, Filho, e Espírito Santo) mas considerados conjuntamente formam uma só família, um só Deus. Como não há contradição ao pensar numa família como três e, simultaneamente, como unidade, esta analogia parece resolver o problema. Além disso, de acordo com este modelo, a unidade entre as pessoas divinas é assegurada por vários factos, como o caso das pessoas divinas partilharem as mesmas características essenciais (omnipotência, omnisciência, perfeição moral), com vontades necessariamente harmoniosas, com relações de amor perfeito e necessária interdependência mútua. Assim, há um só Deus porque a comunidade das pessoas divinas é tão intimamente interconectada que, apesar de serem três pessoas distintas, formam uma só unidade (tal como uma família). Como crítica, pode-se procurar argumentar que nesta perspectiva o tipo de unidade descrito não é suficientemente forte para assegurar o monoteísmo, e fica igualmente por discutir se neste modelo é assegurada a consubstancialidade entre o Pai e o Filho que se defende na doutrina da trindade.

O modelo psicológico (com raízes em Agostinho e com uma defesa contemporânea por Thomas Morris e Trenton Merricks) constitui uma outra estratégia para lidar com o problema lógico da trindade. Neste modelo atende-se a características da mente humana para tornar coerente a doutrina da trindade. Por exemplo, sugere-se que podemos encontrar uma analogia para a trindade na condição psicológica conhecida como “transtorno da personalidade múltipla”; deste modo, tal como um único ser humano pode ter personalidades múltiplas, assim também um único Deus pode existir em três pessoas (embora no caso de Deus seja uma virtude cognitiva e não um defeito). Também é possível fazer uma analogia com a comissurotomia; assim, tal como um único ser humano pode, devido à comissurotomia, ter duas esferas distintas de consciência, de forma similar um único ser divino pode existir em três pessoas, sendo que cada qual é uma esfera distinta de consciência. Com isso o presente modelo permite bloquear a conclusão de que há mais que um Deus. Todavia, como crítica pode-se defender que não é plausível tratar centros distintos de consciência como pessoas distintas; em vez disso, parece mais plausível tratá-las como um mero aspecto de um único sujeito ou pessoa.

Por fim vale a pena considerar o modelo de constituição (que começou a ser desenvolvido com Peter Geach e é defendido actualmente por Peter van Inwagen e Michael Rea) que invoca a noção de “identidade relativa”. A ideia principal desta noção é que as coisas podem ser as mesmas relativamente a um tipo de coisas, mas distintas relativamente a outro tipo de coisas. De um modo mais formal, a identidade relativa sustenta que:

(IR) É possível que existam x, y, F, e G, tal que x é um F, y é um F, x é um G, y é um G, x é o mesmo F que y, mas x não é o mesmo G que y.

Este princípio IR tem várias aplicação em filosofia, como no caso do problema da identidade pessoal (ver aqui). Mas IR também pode ser aplicado com plausibilidade ao problema lógico da trindade. Assim, se IR é verdadeiro, podemos dizer que o Pai, o Filho, e o Espírito Santo são o mesmo Deus mas pessoas distintas; e isso é tudo o que é preciso para a doutrina da trindade ser consistente. Ora, de acordo com este modelo e aplicando IR, para haver uma interpretação adequada do conjunto T, então nas afirmações de (1) a (3) a cópula “é” deve ser lida como “é o mesmo ser que”, enquanto que nas afirmações de (4) a (6) o “não é” deve ser lido como “não é a mesma pessoa que”. Dessa forma não há qualquer inconsistência em T.

Para este modelo de constituição ficar mais claro também é possível oferecer algumas analogias de forma a se perceber melhor o que significa dizer que Pai, Filho, e Espírito Santo estão numa relação de “identidade relativa”. Para isso podemos considerar casos de constituição material (como estátuas e os pedaços de matéria que as constituem) em que duas coisas podem ser o mesmo objecto material mas entidades diferentes. Por exemplo, considere-se a famosa estátua de bronze “O Pensador” de Rodin. Parece óbvio que é um único objecto material; mas também parece plausível descrevê-la como uma estátua (que é um tipo de coisa) e como um pedaço de bronze (que é outro tipo de coisa). É igualmente plausível dizer que a estátua é distinta do pedaço de bronze. Por exemplo, pense-se numa situação em que a estátua é derretida; nesse caso o pedaço de bronze permanece, apesar de ter uma forma diferente, mas “o Pensador” de Rodin já não existirá. Ora, isto parece mostrar que o pedaço de bronze é algo distinto da estátua (uma vez que uma coisa pode existir separada de outra só se são distintas). Assim, estamos perante um caso em que duas coisas distintas são o mesmo objecto material (por partilharem toda a sua matéria em comum). Mas, então, se isto está correcto, podemos dizer por analogia que o Pai, o Filho, e o Espírito Santo podem ser o mesmo Deus mas três pessoas diferentes, tal como uma estátua e o seu pedaço constitutivo são o mesmo objecto material mas ainda assim entidades diferentes. Como crítica pode-se questionar o modelo de constituição ao perguntar-se, no Pensador de Rodin, se existem apenas duas coisas (estátua e pedaço de bronze) ou existem muitas mais. E como se pode determinar quantas coisas existem? Um outro grande desafio deste modelo é mostrar que o princípio IR é coerente e plausível.

Em suma, tal como procurei deixar claro ao longo deste texto, há muita discussão filosófica relevante e interessante nos dias de hoje sobre o problema lógico da trindade. Por isso o leitor também se pode questionar: Será a doutrina da trindade consistente? Se sim, de que forma? E qual será o modelo mais plausível para defender a coerência da trindade divina? A discussão filosófica continua.